O movimento que explorou o inconsciente apostava na abstração da anatomia feminina
A
arte de justaposição, o encadeamento de elementos díspares, desprovidos
de contexto, com a lógica escorregadia e sucinta de um sonho ruim.
Quando os primeiros surrealistas procuraram saquear forças
inconscientes, o sexo, inevitavelmente, passou a ser a principal fonte
de inspiração. O resultado? A prevalência de corpos de mulheres,
apropriados e desmembrados. Sem voz, sem cabeça, a mulher surrealista
atinge seu apogeu em The Rape de Magritte: o qual um rosto é formado por
um tronco, com seios para olhos e um sorriso púbico. Mas isso não quer
dizer que as artistas não se inspiraram no mundo dos sonhos. É o que
prova a mostra Dreamers Awake , na White Cube,
em Londres, com 180 trabalhos de 50 mulheres que exploram política
social, erotismo, misticismo e identidade desde 1930 até hoje.
Apesar
de ser um movimento comandado pelos homens, algumas artistas
conseguiram entrar para o time oficial da arte dos sonhos: Eileen Agar,
Leonora Carrington, Lee Miller, Dorothea Tanning e Leonor Fini – uma
das minhas preferidas, ela passou alguns meses das sua adolescência com
os olhos tapados depois de desenvolver uma doença ocular. Quando as
bandagens foram removidas, cresceu o desejo profundo de começar a
expressar as visões internas que experimentou durante sua cegueira: Fini
pintou mulheres em posições de poder e comemorou a sexualidade feminina
e assinou o primeiro nu erótico masculino pintado por uma mulher, em
1942. Mas ela se negava a ser “tagueada” pelo grupo fundado por André
Breton, que (dizem as más línguas) era um misógino que acreditava que as
mulheres não podiam ocupar uma posição central na arte. Uma feminista
antes de virar moda lutar pelas causas do “sexo frágil”, a argentina que
foi morar na cidade da luz em 1932 e aparentemente gostava de ser um
estranho no ninho: transitava bem entre ser uma pintora talentosa e musa
dos seus amantes – entre eles, Max Ernst. E fez a vez de estilista e
desenhou cenários para teatro e ópera. Foi ela criou, aliás, a garrafa
em forma de torso do perfume Shocking de Elsa Schiaparelli que depois
virou inspiração para a fragrância de Jean Paul Gaultier.
Corpo,
aliás, é quase sempre a questão central: Elas mostraram aos garotos o
que significa viver dentro, em vez de olhar para uma forma feminina. Um
corpo aqui é nocivo, bem como desejável. É carne encarnada. Os
organismos derretem e há cabelo por toda parte. Conhecida por ser o
grande crush de Man Ray, Lee Miller estava sujeita a todos os
desmembramentos visuais costumeiros do olhar surreal. Mas eu só consigo
pensar no autorretrato mais perturbador da história quando seu nome vem à
tona: ela entrou na banheira de Hitler para fazer sua imagem!
Mas
não foram apenas as contemporâneas ao movimento que se sentiam atraídas
pela possibilidade de desbloquear o potencial criativo do inconsciente.
A exposição vai além e trás pinturas, esculturas e fotos de nomes como
Hannah Wilke, Rosemarie Trockel, Paloma Varga Weisz e Mona Hatoum.
Louise Bourgeois – musa mór – e Tracey Emin assinam um trabalho juntas: a
série Do Not Abandon Me é composta por desenhos que confrontam
temas de identidade, sexualidade e medo do abandono. Bourgeois pintou
torsos masculinos e femininos de perfil com guache vermelho, azul e
preto (a ideia era criar silhuetas delicadas e fluidas!). Em seguida
Emin desenhou figuras menores que interagem com as formas “decretando os
desejos e as ansiedades do corpo”, segundo a artista.
Vale
reparar, ainda, no trabalho de Francesca Woodman – a americana se matou
aos 23 anos deixando uma série de autorretratos e imagens de mulheres
nuas maravilhosas (muitos fundindo corpo e ambiente). Se você gosta do
trabalho dela, vale ver o documentário The Woodmans!
Mas a grande pioneira do “selfie” é Claude Cahun, que começou a se
registrar em 1912, aos 18 anos e ficou famosa por se transfigurar e
questionar a imagem da mulher – sim ela/ele foi pioneira ao levantar a
questões de gênero. O surrealismo encontra o mundo punk em Linder e
atravessa continentes com os trabalhos da iraquiana Hayv Kahraman e a
japonesa Tomoko Kashiki. Há, ainda, nomes emergentes como Kelly Akashi e
Loie Hollowell. Serviço Dreamers Awake Local: 144 – 152 Bermondsey Street, Londres Endereço: White Cube Datas: Até 17 de setembro
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