Conheça mais do trabalho desta família baiana composta por avô, filho e neto – Mario Cravo Junior, Mario Cravo Neto e Christian Cravo
As obras de Mario Cravo Junior, Mario Cravo Neto e Christian Cravo são distintas. Apesar disso, foram, em certa medida, construídas lado a lado – seja como forte referência e inspiração passada de geração em geração, seja como antítese ao que é familiar. Os trabalhos dessa família baiana, avô, filho e neto, espelham a inquietude particular – e sagrada – de cada um deles. E resultam em imagens que avançam no tempo, voltam nele, fazem rodopios, brincam com o entendimento que podemos ter das artes e da fotografia documental ao nos sugerir simbolismos da própria vida.
Mário Cravo Júnior
O livro é grosso, farto. No entanto, traz apenas o fragmento de uma vida. “É o resumo da ópera”, diz o neto Christian Cravo ao falar da publicação Exu Iluminado (Versal Editores, 2011), um compêndio com 475 páginas com textos, fotos e reproduções da obra de seu avô, o artista baiano Mario Cravo Junior. Intercalando páginas, há um ensaio fotográfico assinado por Christian e seu pai, o fotógrafo Mario Cravo Neto (1947-2009). “Quem vê assim pode imaginar que foi fácil, orgânico. Afinal, somos da mesma família. Mas isso não é verdade”, diz Christian. Ele não está falando necessariamente sobre a idealização e a confecção do livro, processo iniciado por Mario Cravo Neto, do qual Christian também fez parte, após a morte do pai. Refere-se ao quanto falar de si, da família e dos trabalhos de seu pai e de seu avô, artistas tão renomados mas tão humanos quanto qualquer um de nós, significa remexer em arquivos e histórias pessoais, às vezes também duras demais. Mario Cravo Junior nasceu às 13 horas do dia 13 de abril de 1923, em casa, na rua Porto dos Tainheiros, número 103, na península de Itapagipe, em Salvador. O menininho que veio ao mundo “n’un lindo dia de sol”, conforme conta em seu Livro do Bebê, citado em Exu Iluminado, tornou-se um dos artistas que ajudaram a construir o movimento moderno na Bahia e no Brasil. Quem conhece a capital baiana sabe que vem de suas mãos marcos visuais importantes da cidade, como a Fonte da Rampa do Mercado (1970) e a Cruz Caída (1999), na praça Sé. Além disso, esculturas suas podem ser vistas no Parque Metropolitano Pituaçu, também em Salvador. As esculturas de ferro que compõem a paisagem do lugar foram doadas por Mario em 1994 ao governo da Bahia, fazendo desse um lugar emocionante. Suas obras compõem ainda acervos representativos no Brasil e no mundo, como no Masp, em São Paulo, no Hermitage, em São Petersburgo, e noMoMa, em Nova York.
O que se conta de sua infância é que gostava de olhar o céu e que, por isso mesmo, desejou ser astrônomo. Quando pequeno, desenhava máquinas interplanetárias. E na adolescência montou no alto de um morro na fazenda de seu pai um observatório. “Ali, passava as noites, perdido nos vastos campos siderais”, escreveu seu amigo argentino Carybé (1911-1927), com quem dividiu ateliê numa casa abandonada no Porto da Barra, em Salvador. “Penso que nas esculturas atuais do Mario fragmentos desses engenhos voltam das profundezas do seu ser”, contou Carybé no texto Meu Amigo Mario Cravo, publicado em agosto de 1967 na revista Manchete. Além do céu, há ainda em sua obra a consciência do chão e as tradições de sua terra natal. “O Exu é um dos mais importantes deuses afro-baianos (…). É um tema muito usado ao longo da minha vida de artista (…). Quem sabe por sua semelhança com o comportamento emotivo da condição humana”, escreveu Cravo Junior em uma correspondência, parte dela reproduzida em seu livro. Restos de ferro, madeiras mortas em um incêndio no Mercado Modelo, em Salvador, transformam-se em suas mão. “Poucas coisas em sua obra não são feitas com sucata”, diz Christian. “O Mario leva ainda consigo a grandiosidade da arte popular e consegue ligar tudo isso ao que existe de orgânico do barroco”, fala o artista e amigo Emanoel Araújo, curador do Museu Afro Brasil, em São Paulo.
Mario Cravo Neto
Na sala do espaço da casa reservado ao escritório, vê-se uma foto em preto e branco. Enquadrada, a imagem está no chão, encostada na parede. Nela, as mãos de um menino segura uma galinha-d’angola, que esconde o rosto da criança. “Foi meu pai quem me deu. E esse da foto sou eu”, diz Christian Cravo. A obra chama-se Criança Voodoo, foi feita em 1989 e integra a coleção Pirelli/Masp de Fotografia. “O corpo no meu trabalho sempre foi o meu corpo e o meu espírito, um sem o outro não vinga, imbuídos de um fundo mítico/poético”, disse Mario Cravo Neto certa vez, em uma entrevista publicada no site da Paulo Darzé Galeria de Arte, por ocasião da inauguração da exposição de fotografias A Flecha em Repouso (2008). A fotografia de Christian ainda não foi para a parede. Ele acaba de se mudar de Salvador para São Paulo, onde organiza sua nova morada, ao lado da mulher, Adriana, e da filha, Sofia. No escritório, um arquivo protege cópias banhadas em prata de suas fotos e das poucas de seu pai que levou consigo. Na gaveta, a foto intitulada Odé foi cuidadosamente ampliada por Christian. “Eu ampliava fotos dele e aqui e ali íamos preenchendo lacunas emocionais”, conta. O pai de Christian, Mario Cravo Neto, morreu no dia 9 de agosto de 2009. Deixou incompleto o livro que revisita a obra do pai, Exu Iluminado. Christian deu continuidade ao trabalho. “Quando você idolatra algo, qualquer coisa que não seja isso não é aceitável”, fala Christian, ao pensar na obra do pai e na do avô, na paixão de ambos pelo ofício e na vontade de se expressarem por meio da arte.“O olhar de Mariozinho foi se desenvolvendo de uma forma natural, com base em uma Bahia que ele via, de muita religião e erotismo”, diz Emanoel Araújo. Quando, em 1975, Mariozinho, como é chamado pelos amigos, sofreu um acidente de carro que o deixou um ano sem pôr os pés no chão, foi Emanoel quem levou seus exames e radiografias para São Paulo, em busca de colher opiniões. “Aos poucos, sua obra entrou numa representação do sagrado, por onde ele fez uma profunda viagem”, descreve sobre o trabalho do amigo. “São imagens que driblam o retrato e trazem questões que remetem à música, como uma orquestra de câmera.” Foi assim, diz Emanoel Araújo, que ele viu a fotografia do amigo Mariozinho transformar-se em ritual, em símbolos espirituais evocados em suas composições fotográficas. Refere-se especialmente à série O Tigre de Dahomey – A Serpente de Whydah. Exposta no Museu Afro de São Paulo em 2005, contém uma espécie de síntese do envolvimento do artista com o candomblé. Mario Cravo Neto foi o primogênito do casal Mario Cravo Junior e Lúcia Ferraz. Adolescente, acompanhou o pai durante uma temporada em Berlim. Depois disso foi estudar em Nova York e começou a carreira como escultor (teve uma obra premida na 21ª Bienal de São Paulo, em 1971). Mas logo descobriu a fotografia: uma consequência de seu trabalho tridimensional. Para Emanoel Araújo, as imagens de Mario Cravo Neto alinham-se com obras como as de Pierre Verger, Carybé e de seu próprio pai. “Mas a sua sensibilidade, que não era pouca, veio da sua mãe, cuja timidez foi herdada por Mariozinho”, fala Emanoel. Após a morte de Cravo Neto, o pai, Cravo Junior, escreveu um poema em sua homenagem que diz: “Importa, isto sim, a alegria de vivermos como amigos, irmãos fraternos em arte”.
Christian Cravo
Foi para aprender a se relacionar com o pai que Christian Cravo começou a fotografar. Quando ele tinha 6 anos, sua mãe, Eva Christensen, resolveu voltar à terra natal, a Dinamarca, levando também a filha, Lua. Lá, Christian montou um pequeno laboratório fotográfico em um dos quartos de sua casa. “Passava muitas horas ali”, conta. Aos 12 anos começou a fazer testes com negativos e papéis fotográficos. Os resultados eram enviados ao pai, que então opinava onde o filho poderia puxar mais ou menos na química, a fim de melhorar a imagem. “Era dessa maneira que eu dialogava com meu pai”, revela. E foi assim também que a fotografia tornou-se sina em sua vida.De volta ao Brasil aos 17 anos, por “inquietação e incentivo do pai”, Christian viajou o sertão nordestino e descobriu que queria ser fotógrafo “para conhecer o mundo e o homem”. Mais tarde, recebeu uma bolsa de estudos da Fundação John Simon Guggenheim para pesquisar o Nordeste brasileiro. Depois, retratou o Haiti em mais de 15 viagens. Mergulhou fundo na religiosidade dramática desse país, que, diga-se, tem traços tão semelhantes aos do Brasil. E então a Índia e todo o teatro primitivo de suas crenças. “A fotografia de Christian Cravo insere-se de forma marcante na busca pelo registro documental”, aponta o crítico e curador de fotografia Eder Chiodetto, de São Paulo. Talvez seja por isso que suas imagens passadas sejam vistas por Emanoel Araújo como estereofônicas. “São fotos feitas com muita perplexidade”, avalia ele. Seja como for, Christian começa a fechar o ciclo de retratar a vida e o drama humanos. Agora, suas composições são de paisagens e animais selvagens da Namíbia, Tanzânia, Quênia e Botsuana. O que o interessa é a não forma – ou a forma que se desfaz conforme os movimentos da natureza. “Procuro a antítese de todas as minhas referências passadas. E, cada vez mais, tenho me interessado por tudo que não é humano”, conta.
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